Leonara Camilo de Siqueira
Cristina F. L. Madruga Dinamarco
O Código Civil, no seu artigo 1.639, faculta aos nubentes estipular o que lhes aprouver quanto aos seus bens, vigorando, portanto, o princípio da liberdade em relação às convenções antenupciais.
A escolha do regime de bens é de suma importância para os envolvidos, em razão do impacto e relevantes consequências patrimoniais e sucessórias, seja nas questões atinentes à administração dos bens, seja em eventual dissolução do relacionamento, seja no momento da abertura da sucessão.
Entretanto, em determinadas hipóteses, esse princípio da liberdade em relação às convenções antenupciais é excepcionado, impondo a lei o regime de separação obrigatória de bens aos nubentes, em razão das circunstâncias contidas no artigo 1641 do Código Civil[1].
A intenção originária desta disposição legal, não obstante os debates promovidos pelos estudiosos do tema, era no sentido de aplicação compulsória de um regime de separação de bens, sob uma justificativa protetiva, de que seria necessário resguardar o patrimônio de pessoas de maior idade (antes 60 anos e atualmente 70 anos[2]), partindo da contestável presunção de que seriam vulneráveis, como poderia acontecer no caso de casamento entre pessoas com relevante diferença de idade, evitando-se a obtenção de vantagem econômica, bem como proteger o interesse patrimonial sucessório dos herdeiros necessários.
O regime de separação obrigatória de bens também é imposto no caso de casamento de pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas do matrimônio, enumeradas no artigo 1.523 do Código Civil, e ainda, daquelas que dependerem de suprimento judicial para o casamento.
A exegese desse regime protetivo permite concluir que não há divisão de bens entres os cônjuges, tampouco solidariedade entre eles, salvo no caso do artigo 1.644, do Código Civil, contudo, a incomunicabilidade dos bens ainda é objeto de debate doutrinário, uma vez (i) que a Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, editada em 1.964 e oriunda do artigo 259 do Código Civil de 1.916, continua a produzir seus efeitos ao estabelecer que: “No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”, e (ii) que o Código Civil de 2.022 não repetiu o artigo 259 do Código Civil de 1.916, portanto, haveria separação absoluta dos bens tanto no regime da separação obrigatória de bens, quanto na separação convencional.
Com a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, cuja aplicabilidade vem sendo reconhecida pelos nossos Tribunais, o regime da separação obrigatória de bens, seja para o casamento, seja para a união estável[3], ao final, acabou atraindo, em grande parte, as regras da comunhão parcial de bens, havendo debate doutrinário também quanto à necessidade ou não de prova de esforço comum para aquisição de bens que vierem a se comunicar.
Nesse sentido, para o Ilustre prof. º Flávio Tartuce, grande defensor e estudioso do tema, há a necessidade de prova do esforço para aplicação da referida Súmula. Assim, explica o nobre doutrinador:
“(…) Com o devido respeito, penso de forma diferente, ou seja, pela necessidade de prova do esforço comum para a aplicação da sumular. Primeiro, porque a falta da prova do esforço comum transforma o regime da separação de bens em uma comunhão parcial, o que não parece ter sido o objetivo da sumular. Segundo, diante da vedação do enriquecimento sem causa, constante do art. 884 do Código Civil, eis que a comunicação automática ocorreria sem qualquer razão plausível, em decorrência do mero casamento. Terceiro, porque tenho minhas ressalvas quanto à eficiência atual do regime da comunhão parcial de bens. Quarto, pois o melhor caminho para o nosso Direito é extinguir definitivamente a separação legal e não a transformar em outro regime, o que seria uma solução temporária. De toda sorte, o debate parece que tende a continuar, em todos os planos do Direito de Família Brasileiro.”[4]
O Superior Tribunal de Justiça, que apresentava dissonância de entendimento entre as suas terceira e quarta turmas, pacificou a questão por meio do julgamento dos embargos de divergência em REsp 1.623.858-MG, uniformizando o entendimento de que é necessária a comprovação do esforço comum para que haja comunicação dos bens, “cabendo ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva)”, prestigiando a eficácia do regime da separação legal, conforme Informativo nº 628:
“Casamento contraído sob causa suspensiva. Separação obrigatória de bens (CC/1916, art. 258, II; CC/2002, art. 1.641, II). Partilha. Bens adquiridos onerosamente. Necessidade de prova do esforço comum. Pressuposto da pretensão. Moderna compreensão da Súmula 377/STF.”
Diante do cenário atual, em que o regime da separação obrigatória de bens acabou recebendo certa mitigação pela Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, interessante ponderar se a imposição desse regime impediria que os consortes incrementassem a proteção patrimonial por meio de um pacto antenupcial por escritura pública, convencionando a separação total de bens e afastando os efeitos da incidência da referida Súmula, “por não ser o seu conteúdo de ordem pública mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos”, conforme entendimento do doutrinador Zeno Veloso[5].
Para muitos que vivem essa situação, a possibilidade de afastamento da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, por convenção das partes, não só no casamento, como também na união estável, é utilizada inclusive como uma importante ferramenta para auxiliar no planejamento sucessório, garantindo a transmissão do patrimônio para os herdeiros necessários de maneira eficiente, prevenindo eventuais conflitos familiares, além de priorizar a autonomia privada das partes e a última vontade do “de cujus”.
Importante destacar que, não se trata de alteração de regime de bens do casamento, o que é vedado pela norma no caso das hipóteses do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, mas de possibilidade de estipulação, por meio de pacto antenupcial, de cláusula mais protetiva ao enlace regido pela separação obrigatória de bens, com convenção de afastamento dos efeitos da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, a convenção não tem o condão de atribuir ao casamento ou à união estável os efeitos próprios do regime de separação total convencional de bens, mas de consignar o pacto de separação absoluta dos bens.
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente julgamento do Resp nº 1.922.347-PR (2021/0040322-7), acordou, por unanimidade, pela possibilidade e validade da inclusão de cláusula mais restritivas em pacto antenupcial, a fim de garantir maior segurança jurídica quanto a incidência ou não da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, conforme trecho a seguir consignado:
“(…) 10. Assim, no casamento ou na união estável regidos pelo regime da separação legal ou obrigatória de bens, é possível que os nubentes/companheiros, em exercício da autonomia privada, estipulando o que melhor lhes aprouver em relação aos bens futuros, venham a afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula n. 377 do STF, perfazendo um casamento ou uma união estável celebrada por separação obrigatória com pacto antenupcial de separação de bens (ou de impedimento da comunhão do patrimônio). (…)”[6]
Vale ressaltar, que a convenção da separação absoluta dos bens por meio de pacto antenupcial não impede a possibilidade de um dos cônjuges contemplar o outro como beneficiário(a) de sua parte disponível, via testamento, preservando-se, nesta hipótese, a manifestação da vontade do testador(a).
Muito embora o julgamento recente do Resp nº 1.922.347 tenha contribuído com o entendimento pela possibilidade de inclusão de cláusula específica no pacto antenupcial para afastar a incidência da Súmula 377 no regime da separação obrigatória de bens, atualmente, a própria constitucionalidade desse regime legal está sendo objeto de insurgência por meio do ARE nº 1.309.642/SP, no qual se questiona a vedação à escolha de regime de bens entre cônjuges e companheiros maiores de 70 anos. A repercussão geral do Tema 1236 foi reconhecida pelo Plenário, não havendo ainda data prevista para o julgamento do mérito da controvérsia.
Como se pode observar, são muitas as lacunas e discussões doutrinárias e jurisprudencial que ainda estão por vir, havendo a necessidade de atualização constante da matéria, porém, o julgamento em sede do Resp nº 1.922.347 contribuiu com a sedimentação do entendimento pela possibilidade de estipulação de cláusula ainda mais restritiva ao regime legal, afastando a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal por meio de convenção em pacto antenupcial, com a consequente incomunicabilidade absoluta dos aquestos, garantido maior segurança jurídica na preservação do patrimônio individual, sendo esta mais uma medida a integrar o planejamento patrimonial e sucessório, caso essa seja a vontade de ambos.
[1] Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
[2] Lei 12.344/10
[3] Súmula 655, do Superior Tribunal de Justiça: “Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum” (Segunda Seção. Julgado em 09/11/2022.
[4] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, Direito de Família, 2022, GEN. 17ª Edição, Vol. 05. pg. 189.
[5] Artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará, e replicado em várias páginas da internet.
[6] Cf. STJ – Voto do Ministro Luis Felipe Salomão no REsp nº 1.922.347 – PR, DJe: 01/02/2022.