Igor Urbano de Souza
Marcelo Domingues Pereira
A utilização das plataformas digitais para adquirir produtos e serviços já não é mais uma novidade. Com a expansão da internet nos aparelhos celulares, os chamados smartphones, a aquisição de bens e serviços se tornou algo corriqueiro e de fácil acesso, bem como tornou-se demasiadamente importante e até necessário para qualquer fornecedor o oferecimento de bens e produtos online aos consumidores, questão até mesmo de sobrevivência no mercado moderno.
Contudo, ainda que a facilidade seja conferida a ambas as partes, nem sempre ambos saem ganhando, sendo certo que parte dos fornecedores se aproveitam da vulnerabilidade dos consumidores e de sua falta de opção para compeli-los ao pagamento de taxas que conferem vantagem excessiva ao fornecedor, malgrado a expressa vedação legal contida no artigo 39, V, do Código de Defesa do Consumidor.
Atualmente, notória a possibilidade de venda de ingressos para eventos e espetáculos de forma online, sem que haja a necessidade do consumidor se deslocar até a bilheteria do evento. Em que pese haja conveniência ao consumidor, a contraprestação comumente cobrada e denominada de “taxa de conveniência” pode dar margem a inegável venda casada por meio da imposição, pelo fornecedor, de uma reserva de mercado, recebendo percentuais expressivos sobre os valores de milhares de ingressos em tempo recorde, obstando de fato os consumidores da liberdade de escolha de ir até a bilheteria para aquisição presencial, sem a taxa de conveniência.
Com efeito, os ingressos para espetáculos e eventos costumam ser vendidos poucos dias após o anúncio do evento, ainda que o evento ocorra meses adiante. Neste cenário, impõe-se ao consumidor buscar, com urgência, adquirir os ingressos de forma online, sob o risco de que, caso não o faça de forma online, fique sem os ingressos, ao passo que não possui efetivo e consciente direito de escolha com relação ao pagamento ou não da taxa de conveniência cobrada por plataformas virtuais.
Ainda que se admita a possibilidade de o consumidor optar por locomover-se até a bilheteria para adquirir o ingresso presencialmente, sem o pagamento da denominada “taxa de conveniência”, muitos consumidores, ainda que tenham fácil acesso à bilheteria, optam por adquirir o ingresso de forma online, com o consequente pagamento da taxa de conveniência, por vislumbrarem não a conveniência em si, mas sim a possibilidade de ficarem sem ingressos caso optem pela tentativa de aquisição nas bilheterias presenciais.
Não é desconhecida a dificuldade imposta ao consumidor que pretenda adquirir ingressos presencialmente, a fim de não ter que se sujeitar à taxa de conveniência, tendo que enfrentar longas horas em filas intermináveis, e ainda com o risco de não atingir o objetivo, em razão da disponibilização de poucos ingressos para serem vendidas em pouquíssimas bilheterias.
A questão importante a se analisar é se o fornecedor impõe ou não dificuldades exageradas aos consumidores que optem pela aquisição presencial dos ingressos em bilheterias, inviabilizando de fato essa opção a fim de majorar seus lucros por meio da cobrança da taxa de conveniência via venda casada.
Aludida taxa de conveniência deveria ser paga se precedida de uma verdadeira e consciente decisão do consumidor frente à opção menos conveniente que normalmente é a aquisição presencial em bilheterias, com perdas de tempo em filas e deslocamentos, e não quando decorrente do risco imposto fictamente pelo fornecedor que não disponibiliza ingressos suficientes para aquisições presenciais, inviabilizando de fato essa opção.
A taxa de conveniência pode e deve ser considerada legal quando, por exemplo, um consumidor que resida em cidade ou Estado distante do local do evento, notadamente num país com dimensões continentais como o Brasil, opta pela aquisição em plataformas digitais, pois logicamente os seus custos de locomoção até a bilheteria do evento certamente seriam maiores do que o valor pago a título de taxa de conveniência, de modo que a referida taxa ganha legitimidade ante as peculiaridades de cada caso.
Outrossim, é cediço que ingressos para eventos internacionais costumam esgotar em minutos[1], diante da ansiedade dos fãs em vislumbrarem a oportunidade de assistirem shows de seus artistas favoritos. De tal sorte, não é exagero imaginar que os consumidores procedam à compra dos ingressos sem nem mesmo questionar as taxas embutidas, desembolsando valores expressivos, na medida em que as taxas costumam variar entre 10% e 20% dos valores dos ingressos.
Contudo, aos olhos da legislação consumerista, essa decisão pela aquisição conveniente precisa ser livre e consciente, mas nunca pelo temor do esgotamento de ingressos enquanto se aguarda na fila para aquisição presencial e sem a taxa respectiva, o que de fato poderia representar venda casada do ingresso e do serviço da aquisição conveniente.
Os Tribunais Pátrios divergem quanto ao entendimento acerca da abusividade ou não da taxa de conveniência:
ATO ADMINISTRATIVO – AÇÃO ANULATÓRIA – MULTA APLICADA PELO PROCON – Cobrança de taxa de conveniência – Obtenção de vantagem manifestamente excessiva – Reconhecimento de prática de venda casada – Precedente do STJ – Prova da infração e motivação do ato administrativo comprovados – Valor da multa calculado com observância a critérios estabelecidos na Portaria Normativa nº 45/2015 – Sentença mantida – Recurso desprovido.”[2] – grifou-se
O entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça seguia o mesmo sentido:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO. DIREITO DO CONSUMIDOR. ESPETÁCULOS CULTURAIS. DISPONIBILIZAÇÃO DE INGRESSOS NA INTERNET. COBRANÇA DE “TAXA DE CONVENIÊNCIA”. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO INDICAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. CLÁUSULAS ABERTAS E PRINCÍPIOS. BOA FÉ OBJETIVA. LESÃO ENORME. ABUSIVIDADE DAS CLÁUSULAS. VENDA CASADA (“TYING ARRANGEMENT”). OFENSA À LIBERDADE DE CONTRATAR. TRANSFERÊNCIA DE RISCOS DO EMPREENDIMENTO. DESPROPORCIONALIDADE DAS VANTAGENS. DANO MORAL COLETIVO. LESÃO AO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA COLETIVIDADE. GRAVIDADE E INTOLERÂNCIA. INOCORRÊNCIA. SENTENÇA. EFEITOS. VALIDADE. TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. (…). A assunção da dívida do fornecedor junto ao intermediário exige clareza e transparência na previsão contratual acerca da transferência para o comprador (consumidor) do dever de pagar a comissão de corretagem. Tese repetitiva. 15. Na hipótese concreta, a remuneração da recorrida é integralmente garantida por meio da “taxa de conveniência”, cobrada nos moldes do art. 725 do CC/02, devida pelos consumidores que comprarem ingressos em seu meio virtual, independentemente do direito de arrependimento (art. 49 do CDC). 16. A venda pela internet, que alcança interessados em número infinitamente superior do que a venda por meio presencial, privilegia os interesses dos produtores e promotores do espetáculo cultural de terem, no menor prazo possível, vendidos os espaços destinados ao público e realizado o retorno dos investimentos até então empregados e transfere aos consumidores parcela considerável do risco do empreendimento, pois os serviços a ela relacionados, remunerados pela “taxa de conveniência”, deixam de ser arcados pelos próprios fornecedores. 17. Se os incumbentes optam por submeter os ingressos à venda terceirizada em meio virtual (da internet), devem oferecer ao consumidor diversas opções de compra em diversos sítios eletrônicos, caso contrário, a liberdade dos consumidores de escolha da intermediadora da compra é cerceada, limitada unicamente aos serviços oferecidos pela recorrida, de modo a ficar configurada a venda casada, nos termos do art. 39, I e IX, do CDC. 18. (…). Tese repetitiva. 23. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, parcialmente provido.”[3] – grifou-se
Todavia, a jurisprudência modificou-se ao longo do tempo, de modo que atualmente o Tribunal de Justiça de São Paulo comunga do entendimento adotado pelo C. Superior Tribunal de Justiça, pela validade da cobrança de taxa de conveniência, uma vez que conferida opção ao consumidor em adquirir o ingresso na bilheteria sem o pagamento de aludida taxa, para fins de não configuração da venda casada:
“Prestação de serviços. Demanda de repetição de indébito. Alegação de abusividade na cobrança de “taxa de conveniência”. Ingressos para show de música adquiridos em site na internet. Inexistência de abusividade. Modalidade de venda que envolve logística específica. Repartição dos gastos tão somente aos clientes que exercem a faculdade de adquirir ingressos on-line. Possibilidade de aquisição dos ingressos em bilheteria oficial física sem cobrança da taxa questionada. Precedente do C. STJ. Cobrança atrelada ao serviço adicional devidamente informada ao consumidor. Valor cobrado que não se demonstra excessivo. Demanda improcedente. Sentença de parcial procedência reformada. Apelação da ré provida.”[4] – grifou-se
O posicionamento adotado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça alterou-se da consideração da abusividade da taxa de conveniência para sua validade e legalidade, desde que o consumidor seja previamente informado[5].
Não pretendemos colocar em dúvida a legalidade da taxa de conveniência, em harmonia com o posicionamento adotado atualmente pelos Tribunais, todavia, entendemos importante questionar a análise caso a caso, reprimindo-se a imposição factual da venda casada, quando o fornecedor, apesar de abrir a possibilidade da venda presencial e sem a cobrança da taxa de conveniência, impõe dificuldades aos consumidores que optam por essa modalidade aquisitiva, com carga diminuta de ingressos e poucos guichês de atendimento, formando artificialmente enormes filas, além do risco de esgotamento repentino de ingressos.
Poderia ainda ser questionável o percentual cobrado a título de taxa de conveniência sobre os ingressos, em percentuais que chegam a 20% do seu valor nominal, dando margem a entendimentos a respeito de abusividade.
Com efeito, os Tribunais Pátrios, em harmonia com as disposições previstas no artigo 170, IV e V, da Constituição Federal, bem como nas disposições previstas no Código de Defesa do Consumidor, conferem interpretação favorável ao fornecedor nestes casos, na medida em que admite a cobrança de taxa de conveniência em percentuais de até 20% sobre o valor do ingresso adquirido, prestigiando o direito à informação, a livre iniciativa e o livre mercado.
Portanto, a taxa de conveniência pode ser efetivamente legal, às luzes do ordenamento jurídico brasileiro, desde que o consumidor não seja efetivamente obrigado a adquirir o ingresso de forma online, com a pagamento da taxa de conveniência, ou seja, essa aquisição deve ser precedida da livre e consciente decisão do consumidor pela rejeição à opção de aquisição dos ingressos na bilheteria oficial dos eventos, sob pena de restar configurada a venda casada, devendo se dar especial atenção quanto à efetiva viabilização dessa opção pelo fornecedor, com suficiente carga de ingressos e disponibilização compatível de guichês de atendimento presenciais, viabilizando de fato a opção do consumidor pela aquisição sem a taxa de conveniência.
[1]https://www.estadao.com.br/emais/gente/paramore-fara-show-extra-em-sao-paulo-apos-ter-ingressos-esgotados-em-meia-hora/ acesso em 29.11.2022, às 20h55.
[2] Tribunal de Justiça de São Paulo; Apelação Cível 1003177-92.2020.8.26.0053; Relator: Percival Nogueira; 8ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 24/11/2021; Data de Registro: 01/12/2021.
[3] Superior Tribunal de Justiça, REsp 1737428/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/03/2019, DJe 15/03/2019, grifos nossos.
[4] Tribunal de Justiça de São Paulo; Apelação Cível 1034208-26.2019.8.26.0196; Relator: Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 27/04/2022; grifos nossos.
[5“PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABUSIVIDADE NA VENDA PELA INTERNET DE INGRESSOS DE EVENTOS CULTURAIS E DE ENTRETENIMENTO. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. CONTRADIÇÃO. OCORRÊNCIA. EXTRAPOLAÇÃO DAS BALIZAS DO LITÍGIO E DA DEVOLUTIVIDADE RECURSAL. (…). 3. Validade da intermediação, pela internet, da venda de ingressos para eventos culturais e de entretenimento mediante cobrança de “taxa de conveniência”, desde que o consumidor seja previamente informado o preço total da aquisição do ingresso, com o destaque do valor da “taxa de conveniência”. Analogia com a tese firmada no julgamento do Tema 938/STJ (corretagem imobiliária). 4. Descumprimento do dever de informação pela empresa demanda, na medida a referida taxa de conveniência vem sendo escamoteada na fase pré-contratual, como se estivesse embutida no preço, para depois ser cobrada como um valor adicional, gerando aumento indevido do preço total. Prática abusiva e prejudicial à livre concorrência. 5. Condenação da empresa demandada a informar em suas plataformas de venda, desde a fase pré-contratual, o preço total da aquisição do ingresso, com destaque do valor da taxa de conveniência, sob pena de cominação de astreintes, além da obrigação de restituir o valor da “taxa de conveniência” em cada caso concreto. 6. (…) 7. Saneamento do acórdão ora embargado para, eliminando contradição, dar provimento do recurso especial em menor extensão. 8. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARCIALMENTE ACOLHIDOS, COM EFEITOS INFRINGENTES.” Superior Tribunal de Justiça, EDcl no RESP 1.737.428/RS, Terceira Turma, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgamento em 06/10/2020.