Erika Cesario S. Aparecido
Carlos Augusto Falletti
A due diligence imobiliária constitui importante procedimento que visa o estudo e análise detalhada dos documentos das partes e do imóvel em uma transação imobiliária, e decorre justamente do dever de informar do vendedor, que se restringe a aspectos essenciais do objeto alienado e do ônus de se informar titulado pelo adquirente, que deve se precaver e se assegurar das qualidades do bem adquirido, bem como a higidez do direito alegado pelo vendedor e os riscos jurídicos da aquisição, no intuito de se proteger das pretensões de terceiros.
Em junho de 2022, foi promulgada a Lei nº 14.382 que trouxe relevantes alterações e consequências à validade e eficácia dos negócios jurídicos, objetivando tornar a compra de imóveis menos burocrática, menos custosa e com maior segurança jurídica; entretanto, como se verá adiante, ainda são necessárias algumas cautelas por parte do adquirente a fim de evitar o risco de evicção nas transações imobiliárias.
A Lei 14.382 trouxe relevantes alterações à Lei nº 13.097/15, conhecida como Lei da Concentração dos Atos na Matrícula, que defende o princípio da concentração dos atos na matrícula, pelo qual “todas as informações relevantes relativas a imóveis devem constar da matrícula respectiva mantida no Cartório de Registro de Imóveis competente”[1]. Dentre suas principais alterações está a inclusão do § 2º no art. 54 da Lei nº 13.097/15, que passou a dispensar a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais para caraterização da boa-fé do adquirente:
(…)
§ 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
§ 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:
I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e
II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.
Com essa alteração, a lei pretende estabelecer maior rigor ao credor, que deverá averbar a sua ação judicial, constrição, indisponibilidade de bens na matrícula do imóvel, sem o qual supostamente não poderá ser oponível ao adquirente de boa-fé o conhecimento do estado de insolvência do devedor/vendedor. Essa é a intenção ao dispensar a apresentação de certidões forenses e afastar a responsabilização do adquirente de boa-fé na aquisição sem prévia due diligence da situação do vendedor. Assim, a averbação na matrícula do imóvel conduziria à uma “presunção absoluta de conhecimento pelo terceiro adquirente da pendência do feito e do caráter fraudulento do ato de alienação/oneração praticado”.[2]
Contudo, verifica-se que a lei não veio a definir o que qualificaria a boa-fé do adquirente, o que na prática, afeta a eficácia do dispositivo, por força da vigência do art. 792 do Código de Processo Civil, que caracteriza como aquisição fraudulenta a alienação efetivada quando estiver pendente demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência, o que se verifica justamente através da obtenção de certidões do distribuidor: “A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;”.
Nesta hipótese, mesmo que não averbada ação real, constrição ou indisponibilidade na matrícula do imóvel, a fraude seria oponível ao adquirente ao se comprovar sua má-fé, nos termos do enunciado da Súmula 375 do STJ, que dispõe: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”
Esse também tem sido o entendimento recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que têm exigido como prova da boa-fé a demonstração de conduta mínima de diligência sobre a idoneidade financeira dos vendedores, o que inclui a busca e apresentação das certidões de distribuidores:
APELAÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. Sentença de improcedência. Aquisição de imóvel enquanto tramitava contra os alienantes ação de rescisão contratual de quotas societárias, capaz de levar os alienantes à insolvência. Inteligência do art. 792, inciso IV, do Código de Processo Civil. Dispensa das certidões de distribuição. Falta de cautela dos adquirentes equiparada a má-fé. Súmula 375 do C. Superior Tribunal de Justiça. Fraude a execução constatada. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. [3]
APELAÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. PLEITO DE DESCONSTITUIÇÃO DE FRAUDE À EXECUÇÃO. Bens imóveis alienados após a confirmação da condenação dos alienantes por este Tribunal de Justiça em ação civil pública por prática de atos de improbidade administrativa. Presentes indícios suficientes para o afastamento da presunção de boa-fé dos embargantes, em sua vertente objetiva, como ausência de pesquisa junto ao Distribuidor Cível, não comprovação de pagamento do imóvel, além de outros. A dispensa de certidões de distribuição de feitos ajuizados contra os alienantes é expressão da falta de cautela e diligência dos adquirentes, o que ilide a boa-fé. Sentença de improcedência mantida. RECURSO NÃO PROVIDO.[4]
Agravo de instrumento. Execução de alimentos. Recurso contra a decisão que revogou a penhora do imóvel. Execução que tramita há mais de 25 anos. Praxe na aquisição de imóveis que demanda a solicitação de certidões negativas referentes ao bem e à pessoa do alienante. Não exigência de tal documentação que fulmina a boa-fé do adquirente. Inteligência da Súmula nº 375 do STJ. Precedentes desta C. Câmara e do STJ. Fraude à execução configurada. Ineficácia da compra e venda perante a agravante. Penhora mantida. Decisão reformada. Recurso provido. [5]
Dessa forma, ainda que a Lei 14.382 tenha criado um dispositivo no intuito de reduzir o escopo da due diligence imobiliária, na prática, para se precaver contra eventual alegação de fraude à execução que eventualmente não tenha sido averbada na matrícula, é necessário que a due diligence imobiliária seja realizada de forma integral e completa, para instrumentalizar eventual comprovação de boa-fé do adquirente. Nestes casos, seguir a disposição da lei e dispensar a apresentação das certidões forenses ou de distribuidores judiciais acabará por acarretar maior risco de evicção ao adquirente do imóvel.
[1] ARAUJO, Juliana Rubiniak. Concentração de atos na matrícula e fraude de execução. Operações Imobiliárias: Estruturação e Tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p.310.
[2] DIDIER JR, Fredie Souza e outra. O princípio da concentração da matrícula e a fraude à execução: um diálogo entre a Lei n. 13.097/2015 e o CPC/2015. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 16, n. 23, p.310-330, jul./dez. 2018.
[3] TJSP; Apelação Cível 1028644-84.2020.8.26.0114; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/03/2023; Data de Registro: 22/03/2023.
[4] TJSP; Apelação Cível 1000191-83.2022.8.26.0575; Relator (a): Souza Nery; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro de São José do Rio Pardo – 1ª Vara; Data do Julgamento: 15/03/2023; Data de Registro: 17/03/2023.
[5] TJSP; Agravo de Instrumento 2006243-23.2023.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Marcondes; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 1ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 06/03/2023; Data de Registro: 06/03/2023.