Luca Gajevic Goloni
Marcelo Domingues Pereira
O hábito de comprar e vender virtualmente, por meio do e-commerce, já está consolidado na rotina do brasileiro há pelo menos 15 anos. Com a chegada da pandemia e as restrições de livre circulação de consumidores, esse hábito ficou ainda mais intenso. Segundo matéria veiculada pelo G1 Economia[1], 61% dos brasileiros compram mais pela internet do que em lojas físicas, de acordo com estudo realizado pela Octadesk em parceria com a Opinion Box.
São muitos os formatos em que essas transações ocorrem, dentre elas o marketplace, que é uma modalidade de vendas online colaborativa que muito se assemelha à lógica dos shoppings centers, em se fazendo um comparativo a grosso modo com a comércio físico. Em linhas gerais, assim como em um shopping, cabe ao marketplace a concentração e divulgação de anunciantes diversos, com o objetivo de atingir um público maior do que uma loja individualmente seria capaz de atingir. Ainda, em um shopping center tradicional, fica a cargo do shopping providenciar um espaço físico agradável ao público consumidor, garantir a segurança e a infraestrutura, tanto para os lojistas como para os consumidores que ali frequentam. Já no âmbito da internet, como inexiste espaço físico, essas obrigações se transmutam no dever de garantir a segurança online dos consumidores e dos sellers, como são chamados os “lojistas” da internet, tanto na forma de transações de pagamento seguras, como na proteção de dados.
Com efeito, como a utilização das plataformas de marketplaces está vinculada a um cadastro de dados pessoais, tanto por parte dos consumidores quanto dos sellers, cabe à plataforma o zelo com tais dados, além do regular cumprimento dos dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados, que prevê, em seu artigo 46, que “os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito.”
Em contrapartida, os sellers que aderirem à plataforma do marketplace arcam com um ônus financeiro, principalmente na forma de uma porcentagem dos valores arrecadados com as vendas (comissão), além de outras taxas para remunerar o empreendedor, ou seja, o “dono” da plataforma. Vale ressaltar que, em um shopping center tradicional, os gastos com IPTU, condomínio, ar condicionado, energia elétrica, funcionários, entre outros, costumam ser mais altos do que aqueles suportados pelos lojistas atuantes nos marketplaces, o que reflete em um investimento inicial menor por parte de um lojista que opte por abrir a sua loja virtual nessa configuração.
No Brasil, as plataformas que atuam nesse formato são, por exemplo, a Amazon, a Shopee, o Mercado Livre, a Magazine Luíza, entre outros. Alguns até possuem produtos próprios disponíveis à venda, enquanto outros são exclusivamente plataformas para hospedagem das chamadas lojas virtuais. Em ambos os casos, fica a cargo do marketplace a organização dos anúncios na página, o investimento tecnológico, o processamento do pagamento e o relacionamento direto com o cliente, cabendo a ele transmitir a segurança necessária para atrair os consumidores a se utilizarem daquela plataforma para realizar suas compras.
Ao seller, por sua vez, fica o encargo de zelar para com a mercadoria, garantindo o estoque e o envio dos produtos dentro das condições e prazos anunciados, bem como de solucionar eventuais problemas com a entrega ou com a qualidade e vícios dos produtos vendidos. Ainda, devem os sellers respeitar as normas das agências reguladoras, como a ANVISA e o INMETRO, garantindo que o produto esteja nos padrões de qualidade exigidos por lei.
Nesse ponto, ressalta-se mais uma diferença importante entre o shopping center e o marketplace, na medida em que, em uma loja física, o consumidor recebe o produto imediatamente após a compra, dentro do estabelecimento comercial, enquanto nas transações online tem que se submeter, necessariamente, à entrega do produto, que ocorre no seu domicílio ou em outro endereço indicado, o que atrai a incidência do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê um direito de arrependimento de sete dias do consumidor sempre que o fornecimento ocorrer fora do estabelecimento comercial, o que se aplica para todas as transações de e-commerce, como as realizadas via marketplaces.
Ademais, por se tratar de modalidade de consumo na internet, os marketplaces se submetem não somente ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), como também ao Decreto nº 7.962/2013, que regulamenta tal código no comércio eletrônico e, assim, deve-se ter uma atenção redobrada em relação a tal legislação, tanto por parte das plataformas, quanto por parte dos sellers.
Uma questão merecedora de ainda maior atenção diz respeito à formalização da relação jurídica entre o marketplace e os sellers, que se dá através de um contrato de adesão. Assim, as cláusulas são todas propostas pela plataforma, cabendo aos sellers apenas a escolha de aceitá-las em bloco, ou não, submetendo-se àquelas condições já pré-estabelecidas. A proteção legal dos sellers é frágil, podendo ser destacado apenas o artigo 423 do Código Civil, que prevê que, em caso de ambiguidade, a interpretação de cláusulas desses contratos deve ser a mais favorável ao aderente.
Com efeito, trata-se de um contrato sinalagmático, com direitos e obrigações recíprocas, apesar do evidente desequilíbrio em benefício do marketplace. Ademais, ainda que exista jurisprudência no sentido de enquadrar a relação marketplace-seller como uma relação de consumo, o que se verifica facilmente no Tribunal de Justiça de São Paulo, que flexibiliza o a teoria finalista prevista no artigo 2ª do Código de Defesa do Consumidor para os casos em que se puder presumir a vulnerabilidade de uma das partes, com base em entendimento do Superior Tribunal de Justiça[2], essa jurisprudência ainda não é consolidada e pode ser derrubada futuramente pelos tribunais superiores.
Nesse sentido, o próprio STJ já se pronunciou no sentido de que a teoria finalista mitigada exige prova de vulnerabilidade[3]. Assim, ausente esse elemento, deve-se encarar essa relação como uma relação comercial comum, regida principalmente pelo Código Civil, sendo que eventual reparação por danos eventualmente causados, como por exemplo lucros cessantes em decorrência de instabilidades no sistema, devem se dar à luz dessa legislação geral.
De toda forma, um seller pode se utilizar de uma plataforma já estruturada e com um público consumidor cativo para vender seus produtos com menor investimento inicial, visto que não precisará ter gastos de grande monta relacionados ao desenvolvimento da tecnologia ou à divulgação de seu produto. Entretanto, logicamente o seller deve ter atenção redobrada quanto aos custos e lucratividade de seu negócio, considerando as comissões, taxas de anúncio, taxas de pagamento, taxa de entrega e eventuais outros ônus cobrados pelos “donos” do marketplace, o que afetará especificamente os custos das vendas feitas através da plataforma.
Em contrapartida, o marketplace, ao permitir uma multiplicidade de vendedores em sua plataforma, garante a variedade de produtos e serviços disponíveis aos seus consumidores, ficando com o encargo de promover a publicidade da plataforma e garantir a sua funcionalidade e infraestrutura tecnológica.
Ainda, ao se analisar as relações de consumos geradas a partir desse tipo de transação online, não se pode perder de vista a responsabilização por eventuais vícios nos produtos, já que a regra geral determinada pelo Código de Defesa do Consumidor é a solidariedade de todos os fornecedores presentes na cadeia de consumo, o que na maioria das vezes faz com que o consumidor opte por incluir tanto o seller como o marketplace no polo passivo de suas demandas administrativas (ex. Procon), ou judiciais (ex. juizados especiais).
Contudo, em tese e em se tratando apenas de uma plataforma de intermediação entre o seller (fornecedor) e o consumidor final, o marketplace não deveria responder por vícios nos produtos ou erros causados exclusivamente pelo seller. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de que “O provedor de buscas de produtos que não realiza qualquer intermediação entre consumidor e vendedor não pode ser responsabilizado por qualquer vício da mercadoria ou inadimplemento contratual” (REsp nº 1.444.008 – RS).
Destarte, por mais que o artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor determine a responsabilidade solidária entre todos os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis pelos vícios de qualidade ou quantidade, o marketplace não faz parte da cadeia direta de fornecimento, tratando-se, na maior parte das vezes, apenas de um intermediador. Nesses casos, cabe ao marketplace a alegação e a demonstração de sua ilegitimidade passiva, o que não no entanto não tem o condão de evitar os custos processuais e com honorários advocatícios. Por isso, é importante que as plataformas mantenham uma rigorosa curadoria a respeito dos anunciantes, analisando seus precedentes e eventuais ações em andamento, bem como situação de crédito, como forma de minimizar o risco de litígios e contingências.
Outrossim, por mais que as plataformas não possam ser responsabilizadas por vícios nos produtos anunciados, o marketplace não está completamente isento, na medida em que o parágrafo único do artigo 7º, bem como o parágrafo primeiro do artigo 25, do Código de Defesa do Consumidor, preveem a responsabilização solidária de todos os responsáveis por causar algum tipo de dano ao consumidor. Dessa forma, caso a plataforma esteja relacionada com a causa do dano, como por exemplo uma falha no processamento do pagamento, ou até mesmo no vazamento de dados pessoais cadastrais dos consumidores, deve atuar na reparação desses danos, tanto ao consumidor final como ao próprio seller.
Imagine-se uma queda de operacionalidade de uma grande plataforma de marketplace, que pode ficar fora do ar por algumas horas, prejudicando não só os consumidores finais, mas especialmente os sellers que perderiam vendas possíveis em todo o período de falta de operação da plataforma, atraindo responsabilidade por lucros cessantes ou perda de chances de vendas.
A responsabilidade do marketplace também poderá ser testada em casos de violação de direitos autorais e propriedade intelectual por parte de seus sellers, ou ainda práticas de concorrência desleal, viabilizadas por meio do uso de tais plataformas.
Em suma, com o avanço da tecnologia e as novas formas de consumo que a acompanham, é primordial a atenção de todos os envolvidos quanto às consequências jurídicas dos negócios envolvendo os marketplaces, especialmente no tocante às responsabilidades a serem imputadas ou dirimidas pelas referidas plataformas, bem como por parte dos sellers quanto aos contratos de adesão impostos pelos marketplaces e à legislação aplicável, além da análise criteriosa não só dos bônus, mas também de como os ônus dessa forma de negócio afetará os custos de seus produtos e o resultado de sua empresa.
[1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/12/14/61percent-dos-brasileiros-compram-mais-pela-internet-do-que-em-lojas-fisicas-aponta-estudo.ghtml (Acesso em 17.08.2023)
[2] https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisar&livre=%22AgRg+no+REsp%22+com+%221321083%22#:~:text=O%20STJ%2C%20adotando%20o%20conceito,sua%2C%20n%C3%A3o%20de%20seus%20clientes. (acesso em 31.08.2023)
[3] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/21032023-Falta-de-prova-de-vulnerabilidade-impede-aplicacao-do-CDC-em-contrato-de-gestao-de-pagamentos-on-line.aspx (acesso em 31.08.2023)