Bianca Ruiz Silva
Renata S. Longo Kalassa
Ciro José Callegaro
Atualmente, todos os setores da sociedade são influenciados pelo avanço da tecnologia e mudanças no mercado digital, sendo o setor financeiro um dos mais dinâmicos ao incorporar inovações, sob diversas vertentes.
Os avanços tecnológicos beneficiaram as atividades das instituições financeiras, que aumentaram o portfólio de seus produtos, e passaram a atuar com mais rapidez, praticidade e, em tese, passaram a explorar ambientes que deveriam redundar em maior segurança na prestação de seus serviços, já que cada vez mais as operações ocorrem no âmbito digital.
E, se inicialmente os cartões de crédito e débito substituíram a prática de pagamento via cheque, o surgimento de novos bancos e fintechs, em sua maioria digitais, fomentaram o aumento de utilização de métodos de pagamento eletrônicos, como transferências diretas, TED, DOC e PIX, que, por sua vez, vêm substituindo as transações financeiras com dinheiro físico (cédulas e moedas).
Vale ressaltar, entretanto, que apesar da existência de mecanismos disponibilizados pelo sistema financeiro, os correntistas ainda utilizam em abundância tecnologias analógicas, como o cartão bancário (plástico), e têm sido, em grande número, vítimas de fraudes recorrentes, tais como a clonagem de cartão bancário, e o popularmente conhecido “golpe da troca de cartão bancário”, em que golpistas trocam o cartão bancário de débito das vítimas por outro cartão idêntico, de titularidade usualmente de “laranjas”, e, a partir desta troca, efetuam transações financeiras ilícitas mediante fraude, gerando grandes prejuízos à vítima.
Também se tem verificado o crescente número de golpes envolvendo engenharia social (estelionato), por meio do qual os golpistas se passam por conhecidos e convencem os usuários do sistema financeiro a efetuar transferências bancárias para contas bancárias de terceiros, contas estas que, por sua vez, também foram abertas por meio de fraude, bem como o de ocorrências de extorsão mediante sequestro, que resulta na coerção do consumidor para que utilize os serviços bancários (contratação de empréstimos, saques e transferências), seguidos da subtração de recursos.
Diante do número crescente de casos idênticos ou similares, cabe questionar qual o papel das instituições financeiras no que tange à sua responsabilidade ante às fraudes sofridas pelos seus correntistas, que somente se fizeram possíveis por conta do fornecimento dos referidos serviços e produtos financeiros no mercado.
DA RESPONSABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS
A relação entre os bancos e seus correntistas caracteriza efetiva relação de consumo para todos os efeitos legais, sendo regulada, portanto, pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.078/1990).
As instituições financeiras possuem o interesse legítimo em outorgar crédito a seus correntistas e a prestar serviços cada vez mais facilitados, práticas que se inserem em sua função social. Porém, como todo produto e serviço a ser colocado no mercado, a instituição financeira tem o dever de atender aos princípios da prevenção e da precaução, e do dever de segurança, positivados no CDC (artigos 6º, inciso VI, e 8º).
A Lei Consumerista dispõe também acerca da responsabilização objetiva, como regra, do fornecedor de serviços na hipótese de vícios ou defeitos, como se verifica do teor de seus artigos 14 e 20, plenamente aplicáveis às instituições bancárias e seus correntistas.
Neste mesmo sentido é o posicionamento doutrinário, ao dispor que a responsabilidade objetiva deriva da conjunção da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, e da teoria do risco do empreendimento, nos termos do quanto aduz o eminente Jurista,Bruno Miragem[1]:
O direito do consumidor, e a premissa da qual este parte, de desigualdade fática entre consumidor e fornecedor, impõe então que em matéria de responsabilidade civil decorrente das relações de consumo, adote-se o critério da responsabilidade objetiva, independente da demonstração de culpa. A finalidade é contemplar situações nas quais, em face da vulnerabilidade do consumidor e da ausência de conhecimento sobre a atividade de fornecimento de produtos e serviços, o fornecedor, expert em sua atividade profissional habitual, e que dá causa ao risco em razão da atividade econômica que desenvolve, responda pelos danos que dela sejam decorrentes.
A jurisprudência tem se posicionado no sentido de que, nas hipóteses de dano aos correntistas por fraudes e delitos praticados por terceiros em operações bancárias, responderá o banco em razão de sua responsabilidade objetiva, independentemente de culpa, exceto nas hipóteses previstas em Lei, consolidando-se tal entendimento nos termos da Súmula 479 do Eg. Superior Tribunal de Justiça:
As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.
Em suma, a jurisprudência sedimentou o entendimento de que as instituições financeiras responderão objetivamente por fortuitos internos, ainda que estes decorram da atividade de terceiros, residindo, neste contexto, a dificuldade em definir qual o alcance do conceito do fortuito interno para fins de fraudes perpetradas que se valham do sistema financeiro, e demais atividades correlatas.
São considerados casos fortuitos internos, todos aqueles que incidem durante o processo de elaboração do produto ou execução do serviço, não eximindo a responsabilidade civil do fornecedor. Trata-se, portanto, do dever dos empreendedores de arcar com os danos decorrentes da própria atividade desenvolvida e que venham a trazer prejuízos ao consumidor.
No que tange aos fortuitos externos, são alheios ou estranhos ao processo de elaboração do produto ou execução do serviço, ante à ausência de defeitos, ou ante à culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros, o que poderia vir a caracterizar excludente de responsabilidade civil do fornecedor e que, no caso sob análise, trataria de eventos que não possuiriam qualquer correlação direta com a instituição bancária.
É indiscutível que as fraudes bancárias em geral (tais como os golpes do PIX, troca do cartão de débito/crédito) pressupõem a ação maliciosa de terceiros, e por tal razão as instituições financeiras têm pretendido que prevaleça a tese de configuração de fortuito externo, avocando a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro como excludente de responsabilidade.
Contudo, embora se verifique a ação de terceiros, a ocorrência destas fraudes depende da conjunção de uma série de fatores, como (i) a abertura de contas bancárias / de pagamento, em nome dos agentes criminosos ou de “laranjas”, usualmente também por meio de fraude, como a utilização de documentos falsos, ou de falsidade ideológica, o que atrai a responsabilidade também da instituição financeira receptora dos recursos, (ii) a contratação de maquinetas para transações por meio de crédito e débito, vinculadas às contas administradas pelos agentes criminosos, (iii) a falha de monitoramento, pela instituição financeira de que o consumidor é correntista, de movimentações atípicas.
Em que pese louvável a adoção de procedimentos simplificados para a abertura de contas, as instituições financeiras têm o dever de diligência de aferição da validade dos documentos utilizados para identificação do interessado, e da verificação da autenticidade do interessado. A falha nesse dever favorece a abertura de contas “laranjas”, instrumento fundamental para a prática dos ilícitos.
Ademais, as instituições financeiras custodiantes dos recursos das vítimas, também têm o dever de instituir critérios de segurança para identificação de movimentações atípicas, com base no perfil declarado pelo consumidor, no perfil de movimentação financeira pretérita, na localização geográfica dos gastos, e outras métricas, de modo a que seja acionado imediatamente o departamento de segurança na hipótese de operação atípica, contatando o consumidor para validação da operação.
A disponibilização ao consumidor de mecanismos para informação prévia de gastos que poderiam ser considerados atípicos também pode favorecer o maior controle de segurança, em favor tanto da instituição financeira como do consumidor.
Por tais razões, casos como os de abertura de conta corrente por falsários, clonagem de cartão de crédito, transações bancárias ilícitas, entre outras ilicitudes, já vêm sendo considerados pelo STJ como fortuito interno, por se tratar de situações diretamente relacionadas aos riscos da atividade econômica das instituições financeiras.
Em julgamento sobre o tema, o Exmo. Ministro Luis Felipe Salomão assim deliberou:
[…] a ocorrência de fraudes ou delitos contra o sistema bancário, dos quais resultam danos a terceiros ou a correntistas, insere-se na categoria doutrinária de fortuito interno, pois fazem parte do próprio risco do empreendimento e, por isso mesmo, previsíveis e, no mais das vezes, evitáveis. [2]
Assim, pode-se concluir que as fraudes bancárias perpetradas por terceiros que envolvam movimentações atípicas, sejam das contas dos consumidores correntistas vítimas da fraude, sejam da própria conta bancária de destino dos recursos, configuram fortuito interno, e, na hipótese de resultarem em danos, estes deverão ser reparados pelas instituições financeiras envolvidas, solidariamente, que não se isentarão do dever de indenizar o correntista.
Neste diapasão, há entendimento jurisprudencial recente de que fraudes até mesmo como o golpe da troca de cartão são considerados como fortuito interno, haja vista as falhas na segurança e na prestação de serviços dos bancos que facilitam a terceiros de má-fé a concretização destes golpes, e por se tratar de riscos relacionados à atividade econômica dos bancos, conforme já decidiu o Eg. Tribunal de Justiça de São Paulo:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. DANOS MORAIS. TROCA DE CARTÃO. FRAUDE BANCÁRIA. AUSÊNCIA CULPA DO CONSUMIDOR. Ação declaratória de inexigibilidade de débito cumulada com pedido de indenização. Cartão bancário apossado indevidamente por terceiro, quando do uso regular pelo consumidor. Ausência de fornecimento de senha. Falha do sistema de segurança, ao permitir que terceiro tivesse a possibilidade do uso do cartão, mesmo sem a senha. Ademais, as movimentações traduziam notória fraude. No caso sob julgamento, as faturas juntadas (fls. 58/99 e 100/103) demonstram que os lançamentos impugnados estavam fora do perfil de consumo do autor. As compras assumiam valores significativos de R$ 2.000,00 com casa noturna, R$ 2.200,00 e R$ 1.800,00 com Ana Vitoria Gomes, R$ 2.000,00 com Stelo S A João Almeida. Vale ressaltar que todas compras foram realizadas no mesmo dia, o que devia ter sido percebido pelo sistema do banco. A prova documental não deixou dúvidas de que aquelas operações indicavam que o cartão era objeto de uso indevido. Não era necessário ter enorme experiência investigativa para desconfiar da idoneidade das compras, quando realizadas no mesmo dia e fora do perfil do consumidor. Incidência da Súmula 479 do STJ. Responsabilidade civil do banco réu configurada. Falha no serviço bancário por insuficiência na segurança do sistema, que permitiu a realização de transações fora do perfil do autor. Inocorrência da culpa exclusiva do consumidor, que não entregou senha ou cartão a terceiros. Troca de cartão sem qualquer participação do consumidor. Danos morais reconhecidos – indenização fixada em R$ 5.000,00, observando-se os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Ação procedente em maior extensão. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO DO RÉU IMPROVIDO. RECURSO DO AUTOR PARCIALMENTE PROVIDO.
(TJ-SP – AC: 10219409720198260564 SP 1021940-97.2019.8.26.0564, Relator: Alexandre David Malfatti, Data de Julgamento: 22/11/2021, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/11/2021)
CONCLUSÃO
As instituições financeiras possuem responsabilidade civil objetiva pelos danos causados aos seus contratantes em decorrência de fraudes bancárias que, dentre outras hipóteses, redundem na movimentação atípica da conta do consumidor-vítima, por restar caracterizado o fortuito interno, componente definidor do risco relacionado à sua atividade econômica, nos termos da súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça e dos artigos 6º, VI, 8º e 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, diante da evidente falha dos procedimentos de segurança das instituições financeiras, que facilita a realização de fraudes por terceiros de má fé, e por se tratar de um risco relacionado à atividade econômica dessas entidades, deverão as instituições financeiras, em razão de sua responsabilidade civil objetiva, responder pelos danos que tais fraudes perpetradas por terceiros venham a causar a seus correntistas.
[1] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor.5. ed. p.43-São Paulo-Revista dos Tribunais. 2014
[2] Cf. STJ – Voto do Ministro Luis Felipe Salomão no REsp 1197929 PR, 2ª Seção, DJe 12/09/2011.