Camila Barreto Afonso
Marcelo Domingues Pereira
O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, fundamentado nos preceitos da Constituição Federal (artigo 170, inciso V, da CF/88), fortalecido pelo Código de Defesa do Consumidor (artigos 105 e seguintes do CDC) e regulamentado pelo Decreto nº 2.181/1997, confere ao Procon, órgão integrante da Administração Pública, a missão essencial de proteger os direitos dos consumidores, que dentre outras maneiras é operacionalizada por meio da: orientação e atendimento aos consumidores, procedibilidade das reclamações individuais, assim como da fiscalização das relações de consumo.
No processo administrativo, o Procon também funciona como instância de instrução e julgamento, cuja atuação, por ser órgão integrante da Administração Pública, está estritamente vinculada à observância das regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, na legislação complementar e no próprio Decreto nº 2.181/1997, esse último que, além de tratar sobre a forma como se dará a fiscalização dos estabelecimentos dos fornecedores, prevê as práticas infrativas, as penalidades administrativas (a exemplo da multa), e as regras processuais atinentes ao processo administrativo sancionador.
Quando o Procon, por meio de seus agentes fiscais, atua fiscalizando os estabelecimentos empresariais dos fornecedores e constata eventual irregularidade, lavram-se os denominados autos de constatação e/ou de infração, esse último em observância à forma prevista no artigo 35 do Decreto nº 2.181/97, até porque a não observância à forma de qualquer ato administrativo enseja sua nulidade.
Posteriormente, o auto de constatação e/ou o auto de infração fundamentam a eventual instauração do processo administrativo sancionador (artigos 33 e seguintes do Decreto nº 2.181/97), ocasião em que ao fornecedor deve ser garantido apresentar defesa e produzir as provas pretendidas, competindo-lhe demonstrar, em sendo o caso, a inexistência de prática infrativa ou até mesmo a ilegalidade da autuação.
Por óbvio, a apresentação de defesa administrativa por parte do fornecedor é de suma importância, já que são graves as penalidades administrativas que podem lhe ser aplicadas, a exemplo das penas de multa, suspensão temporária de atividade, cassação de licença do estabelecimento ou de atividade, dentre outras previstas nos incisos do artigo 18, do Decreto nº 2.181/97.
No decorrer dos últimos anos, contudo, houve notória deturpação da finalidade da lei e do próprio Decreto nº 2.181/97, em inegável intenção arrecadatória. Isso porque, olvidando-se da finalidade da legislação consumerista, que é sobretudo a de proteger os consumidores, verificou-se o aumento significativo da lavratura de autos de infração, cujos fatos, apesar de tratarem de baixa ou baixíssima lesão ao bem jurídico tutelado, impingem aos fornecedores elevadíssimas (e até mesmo milionárias) multas administrativas, em flagrante inobservância aos princípios da finalidade, motivação, razoabilidade e eficiência.
Assim, em razão do questionável aumento da lavratura de autos de infração tutelando bens jurídicos de baixa relevância, dos quais, no entanto, muitas vezes resultam a aplicação de multas administrativas em valores elevados e desproporcionais – em prejuízo dos fornecedores – constatou-se o consequente aumento da judicialização das denominadas Ações Anulatórias de Multas Administrativas oriundas de processos administrativos do Procon. Tal fato, no entanto, sobrecarrega ainda mais o já assoberbado Poder Judiciário, a quem compete a análise dos requisitos legais de validade dos atos e decisões administrativas, mas que também pode aferir a inobservância aos princípios administrativos, como os da razoabilidade e proporcionalidade.
Ante o crescente aumento desse tipo de demanda, o Poder Legislativo entendeu por bem reforçar ainda mais a finalidade da legislação consumerista, que objetiva: proteger o consumidor, e não meramente aplicar multas administrativas em prejuízo dos fornecedores e com fins evidentemente arrecadatórios. E foi justamente visando o atendimento à finalidade precípua da lei e à redução de custos com a persecução e a movimentação da máquina pública nas hipóteses em que verificada a baixa lesão ao bem jurídico, que foram incluídos ao artigo 33, do Decreto nº 2.181/97, os §§ 4º e 5º:
§ 4º Na hipótese de ser indicada a baixa lesão ao bem jurídico tutelado, inclusive em relação aos custos de persecução, a autoridade administrativa, mediante ato motivado, poderá deixar de instaurar processo administrativo sancionador.
§ 5º Para fins do disposto no § 4º, a autoridade administrativa deverá utilizar outros instrumentos e medidas de supervisão, observados os princípios da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da eficiência.
Verifica-se, portanto, o direcionamento legal conferido ao agente fiscalizador, que, sopesando a baixa lesão ao bem jurídico tutelado versus os custos de persecução com a instauração de processo administrativo, poderá, por meio de decisão motivada, deixar de instaurar processo administrativo sancionador, em observância aos princípios da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da eficiência.
Ou seja, passou-se a incentivar a autoridade administrativa, o que se dá por meio do Procon, a utilizar-se de outros instrumentos de supervisão que não a mera aplicação de multas administrativas e repressivas, que definitivamente não asseguram a proteção prévia dos consumidores – finalidade precípua da legislação consumerista –, já que a aplicação de quaisquer penalidades pressupõe (ou ao menos deveria pressupor) a ocorrência de violação relevante aos direitos dos consumidores, tratando-se de mera repreensão tardia e que não se mostra eficaz à efetiva proteção dos consumidores.
Nesse sentido, foi por meio do Decreto nº 10.887/2021, que restou inserido o artigo 38-A no Decreto nº 2.181/97, segundo o qual: “A fiscalização, no âmbito das relações de consumo, deverá ser prioritariamente orientadora, quando a atividade econômica for classificada como de risco leve, irrelevante ou inexistente, nos termos do disposto na Lei nº 13.874, de 2019”.
Verifica-se, portanto, que as alterações promovidas no Decreto nº 2.181/97 objetivam, sobretudo, assegurar a proteção prévia e efetiva dos consumidores, mediante a orientação dos próprios fornecedores, de modo que, por consequência, sejam afastadas as autuações repressivas e desproporcionais, para dar lugar à fiscalização orientadora, principalmente nas hipóteses em que verificada a baixa lesão ao bem jurídico tutelado, como por exemplo falhas em etiquetagem de produtos, duplicidade de preços, informações incompletas ou não ostensivas, dentre outros.
A medida adotada para se colocar em prática a finalidade prioritariamente orientadora, expressamente prevista no Decreto nº 2.181/97, foi a inclusão do requisito denominado: “dupla visita”, inserido nos §§1º e 2º, do aludido artigo 38-A, in verbis:
§ 1º Para fins do disposto no caput, o critério de dupla visita para lavratura de auto de infração será observado, exceto na hipótese de ocorrência de reincidência, fraude, resistência ou embaraço à fiscalização.
§ 2º A inobservância do critério de dupla visita, nos termos do disposto no § 1º, implica nulidade do auto de infração, independentemente da natureza da obrigação.
Tem-se, portanto, que visando conferir à fiscalização caráter prioritariamente orientador, a lavratura de auto de infração deve ser precedida de duas visitas ao estabelecimento empresarial do fornecedor, salvo nos casos de reincidência, fraude, resistência ou embaraço à fiscalização. Trata-se, portanto, de requisito legal atinente à forma do ato administrativo, cuja inobservância ensejará, inclusive, a nulidade do auto de infração e consequentemente dos atos posteriores, a exemplo das penalidades administrativas que dele eventualmente decorram.
O critério da dupla visita já era uma garantia prevista no Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, incluída na Lei Complementar nº 155/2006. Portanto, inicialmente aplicável a essas empresas, cuja abrangência, com a inclusão dos §§1ºe 2º do artigo 38-A no Decreto nº 2.181/97, foi expandida para fornecedores que exercem atividade econômica classificada como de risco leve, irrelevante ou inexistente, conforme classificação estabelecida pelo Poder Executivo Federal.
A Lei nº 13.874/2019, mencionada no caput artigo 38-A do Decreto nº 2.181/97, e que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, dispõe expressamente em seu artigo 4º-A, inciso III, que:
“Art. 4-A: É dever da administração pública e das demais entidades que se sujeitam a esta Lei, na aplicação da ordenação pública sobre atividades econômicas privadas:
III – observar o critério de dupla visita para lavratura de autos de infração decorrentes do exercício de atividade considerada de baixo ou médio risco.
Para delimitação de quais seriam as atividades consideradas de baixo ou médio risco, no âmbito do Estado de São Paulo, sobreveio a Portaria nº 0185/2022[1], expedida pelo Procon-SP, por meio da qual estabeleceu-se que serão consideradas de baixo risco: (i) as atividades classificadas como de “baixo risco A” para gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (GCSIM), nos termos da Resolução CGSIM nº 51/2019, e alterações posteriores”, e (ii) atividades econômicas que compõem os CNAEs nºs 4711-3, 4724-5 e 4693-1”, esses últimos que correspondem, respectivamente: ao comércio varejista em geral, comércio varejista de hortifrutigranjeiros; e comércio atacadista de mercadorias em geral, sem predominância de alimentos ou de insumos agropecuários.
A Portaria nº 0185/2022 do Procon-SP, também dispõe em seu artigo 2º, § 4º, as hipóteses que seriam incompatíveis com o critério da dupla visita, a exemplo daquelas que possam afetar a saúde ou segurança do consumidor, provoquem dano patrimonial de natureza coletiva, dentre outras.
Ainda no âmbito do Procon-SP, vale mencionar a Portaria nº 51/2018, que apesar de tratar sobre as atividades e situações cujo grau de risco seja considerado alto para fins do disposto no parágrafo 3º, do artigo 55, da Lei Complementar 123/06, com as modificações incluídas pela Lei Complementar 155/16, traz expressamente tais hipóteses cujo grau de risco é considerado alto e, portanto, por sua natureza, comportam grau de risco incompatível com o procedimento de fiscalização orientadora e dupla visita em microempresas e empresas de pequeno porte.
Assim, houve efetivo avanço normativo contra as autuações desarrazoadas e desproporcionais que, inclusive, são ineficazes ao objetivo precípuo da própria legislação consumerista, que visa à proteção dos consumidores, e não a uma mera repreensão dos fornecedores sobre qualquer pretexto e a todo custo, por mais ínfimo que seja o bem jurídico tutelado, minimizando assim o risco de autuações meramente arrecadatórias.
Diante de todo o exposto, a finalidade prioritariamente orientadora disposta no Decreto nº 2.181/97, que regulamenta o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, traz, principalmente por meio do critério da “dupla visita”, um instrumento essencial não apenas para garantir a justa proteção dos consumidores, mas também para salvaguardar as atividades econômicas, impondo à administração pública uma fiscalização orientadora e não meramente arrecadatória de multas, tratando-se de louvável avanço legislativo no sentido de proteger os direitos dos consumidores, o que evidentemente não se dá por meio da mera aplicação de multas administrativas em prejuízo dos fornecedores, mas sim por meio de uma fiscalização efetiva e orientadora destes, impulsionando, por via reflexa, o crescimento econômico e a livre iniciativa no país, alinhando-se ao propósito constitucional de equilíbrio nas relações de consumo e trazendo maior segurança jurídica.
[1] https://www.procon.sp.gov.br/wp-content/uploads/2022/10/PORTARIA-NORMATIVA-185-2022-DUPLA-VISITA-EM-ATIVIDADE-DE-BAIXO-RISCO.pdf